23 Agosto 2022
De Stalingrado a Berlim e das Ardenas à Guerra Civil espanhola, o historiador e especialista militar Antony Beevor (Londres, 1946) está há quatro décadas explicando as batalhas mais importantes do século XX, explorando fontes inéditas, dando solidez à narrativa e colocando o leitor na pele dos protagonistas.
Desde a queda da Cortina de Ferro, desejava escrever a história da revolução russa e da guerra civil de 1917 a 1921. A última coisa que pensava quando começou a trabalhar era que teria que explicar a Rússia (Crítica) de um século atrás, colocando-a no contexto dramático de hoje.
A entrevista é de Juan Fernández, publicada por Clarín-Revista Ñ, 19-08-2022. A tradução é do Cepat.
Você afirma que a guerra civil russa foi o acontecimento mais influente do século XX. Não está exagerando?
Houve outras guerras mais importantes, mas a revolução e o conflito civil russo situaram o marco ideológico sobre o qual percorreu todo o século. O confronto tão virulento entre vermelhos e brancos polarizou as posições políticas de seu tempo, aniquilou as aspirações do centro liberal e se traduziu no antagonismo travado pelo nazismo e o stalinismo, na Segunda Guerra Mundial e na própria Guerra Civil Espanhola.
Também chama a atenção para o nível de violência e crueldade que houve nesse conflito.
O horror da guerra civil russa é incomparável. Muito se falou sobre os crimes nazistas na Segunda Guerra Mundial, mas não o suficiente sobre o sadismo tão brutal que existia na cheka (polícia secreta bolchevique). Esse conflito também foi decisivo para fixar o marco da violência mais brutal que poderia ser aplicada em uma guerra, e os nazistas tomaram boa nota disto.
Foi necessária tanta violência?
Goebbels costumava dizer que o ódio não é o suficiente para manipular as massas, é preciso semear nelas o medo mais extremo. O terror é a melhor arma de guerra que existe. Foi a gasolina que impulsionou a guerra civil russa e o que deu firmeza ao regime soviético e permitiu as três mentiras sobre as quais se sustentou.
Lenin prometeu terras aos camponeses, poder aos operários nas fábricas e paz aos soldados. Não cumpriu nada. O poder e a propriedade ficaram com os Soviets, que eram controlados de cima, e o comunismo se tornou uma guerra civil internacional. Mas ninguém protestou por medo. No funeral de Stalin até suas vítimas choravam. Não por apreço ao defunto: temiam um retorno ao horror da guerra civil.
Em seu livro, descreve cenas arrepiantes. Que explicação dá para tanto sadismo?
Sou incapaz de encontrar um sentido para aquele grau de crueldade e barbárie. Não torturavam para obter informações, agiam assim por prazer. Na Segunda Guerra, aconteceu com os estupros de alemãs.
Alguns psiquiatras russos que estudaram esses comportamentos falam de uma atração pela atrocidade em massa. Esses soldados preferiam o estupro em grupo ao estupro solitário. Acredito que tem a ver com a forma como os russos tratam seus próprios soldados.
A que se refere?
Nenhum outro exército trata tão mal suas tropas, e assim continua até hoje. Nos anos 1990, a cada ano, 5.000 recrutas russos se suicidavam por causa das humilhações causadas por seus superiores, para torná-los mais duros e prepará-los para a guerra. Isso faz com que se comportem com suas vítimas como se comportaram com eles. É o que estamos vendo na guerra da Ucrânia.
Entender a Rússia de 100 anos atrás ajuda a compreender a Rússia de agora?
Em parte, sim. Desde as invasões mongóis do século XIII, este país se sentiu ameaçado. Pensam que o mundo está contra eles, que precisam se defender, e para isso não se importam em usar a maior violência possível. Essa narrativa está ligada a um sentimento imperialista que não diminuiu ao longo dos anos.
Sua conquista do Cáucaso e da Ásia Central, no século XIX, foi tão brutal que envergonharia qualquer país, mas os enche de orgulho. E no comando está Putin, um líder que o Ocidente subestimou, assim como a França e a Grã-Bretanha subestimaram Hitler, nos anos 1930. Ninguém tentou pensar como ele pensa.
Como pensa Putin?
Ele tem a obsessão do macho que só almeja dominar. Diz que a queda da URSS foi a grande tragédia da Rússia, mas Putin não almeja retornar com a URSS, mas, ao contrário, construir o novo império russo.
Nesse imaginário, vê a si próprio como um czar. Sua referência é Pedro, o Grande, não Lenin. Seu palácio está cheio de águias bicéfalas imperiais e retratos dos grandes czares. Mas não se engane: na guerra civil, teria ficado com os brancos, não com os bolcheviques.
O historiador Simon Sebag Montefiore, especialista nos Romanov, disse-me em uma entrevista: “Os russos tendem à autocracia, precisam de um homem forte que mande neles, e Putin sabe disso”. Você concorda?
Totalmente. Essas imagens de Putin a cavalo com o peito nu ou praticando artes marciais são muito aplaudidas lá. No inconsciente russo opera a memória do horror que viveram há um século. Preferem ter um homem forte que mande neles do que voltar ao caos daquela guerra civil tão sangrenta.
Como enfrentar essa forma de pensar?
Em primeiro lugar, estando conscientes do que temos pela frente. A guerra na Ucrânia evidenciou o fracasso da diplomacia europeia. As tentativas de Macron em negociar com Putin ou de Merkel para o incorporar na comunidade internacional, com laços comerciais, foram inúteis.
A invasão da Ucrânia nos fez ver que não podíamos continuar dependendo das matérias-primas russas. No fundo, devemos agradecê-lo. O importante é que a Europa esteja firme e unida.
Teme que isso não aconteça?
Nos próximos meses, vão crescer as pressões para que a Ucrânia negocie com a Rússia a qualquer preço, e isso é muito perigoso. Putin está desesperado para alcançar um cessar-fogo e estabelecer uma retirada, mas estou convencido de que ele só faria esse movimento para retornar mais adiante com mais força. A retirada russa só seria aceitável se a Ucrânia ficasse protegida por algo parecido ao artigo 5 da OTAN, que obrigaria a Aliança a intervir, caso a Rússia volte a atacar.
Há 100 anos, quando a guerra civil russa terminou, poucos imaginavam suas consequências. Você se atreve a mensurar quais virão dessa invasão?
No curto prazo, a guerra continuará no mínimo até 2023 e provocará uma recessão econômica com cortes no fornecimento de energia na Europa, fome na Ásia, África e movimentos migratórios difíceis de gerenciar. Obriga-nos a acelerar a transição energética. O ano de 2022 marcará um ponto de inflexão no século XXI. Este ano entra para a história como 1914 ou 1945.
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“Putin pensa em Pedro, o Grande, não em Lenin”. Entrevista com Antony Beevor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU